quinta-feira, março 30, 2006

O craque do jejum


O período compreendido entre o final dos anos 70 e o início dos 90 foi de muito sofrimento para uma das maiores torcidas do futebol paulista e brasileiro. Após muitos anos de felicidade e grandes conquistas proporcionadas pelas chamadas "duas Academias", o Palmeiras ingressou num terrível jejum, que se estendeu de 1977 (coincidência ou não, o ano em que o Divino Ademir da Guia fez sua última partida como profissional) a 1993 (ano da redentora conquista estadual com direito a um indiscutível 4 x 0 no rival Corinthians).


Durante este tempo, o torcedor alviverde viu vários jogadores chegarem e saírem. Toda a sorte de atletas: de craques de seleção, como Batista, Enéas, Mário Sérgio e Neto, a outros não tão, digamos, "brilhantes", como Jaime Bôni, Bizu, Darinta e Rondinaldo. Alguns times montados eram indiscutivelmente fortes e talvez lhes tenha faltado apenas sorte; outros, contudo, eram risíveis e totalmente incondizentes com as tradições palmeirenses.


De todos estes jogadores, o que maior destaque obteve nos anos de penúria foi Jorge Antônio Putinatti, ou simplesmente, Jorginho. Natural de Marília, interior paulista (23/08/1959), cedo obteve destaque jogando na equipe local, onde profissionalizou-se em 1976. Após brilhar na Copa São Paulo de Juniores de 1978 e no Campeonato Paulista do mesmo ano, desembarcou no Parque Antártica cercado de expectativa e confiança.


Não demorou a conseguir seu espaço na equipe principal e rapidamente caiu nas graças da torcida. O Palmeiras de 1979 era uma equipe muito forte montada pelo técnico Telê Santana, de jogo bonito e ofensivo, e que aliava a juventude de promessas como o goleiro Gilmar, o lateral-esquerdo Pedrinho e o próprio Jorginho à experiência de jogadores como o zagueiro Polozzi e o meia Jorge Mendonça, ambos reservas da seleção que havia disputado a Copa do Mundo da Argentina, no ano anterior.



Jorginho era um jogador de futebol elegante, de futebol refinado e habilidoso. Assumiu a camisa 7, mas não chegava a ser um autêntico ponta-direita, deslocando-se por todas as funções do ataque e também funcionando como meia ofensivo. Suas cobrança de escanteio eram eficientes e venenosas: além de municiarem as perigosas jogadas de cabeceio dos atacantes e dos zagueiros, não raro culminavam em belos gols olímpicos. Fazia também lançamentos magistrais e seu controle de bola era esplêndido. Seu maior defeito estava fora de campo: a excessiva discrição e a falta absoluta de marketing pessoal, que muito atrapalharam sua carreira, especialmente em termos de seleção brasileira, em benefício de outros jogadores de categoria nitidamente inferior.



O ápice daquele time se deu num palco bastante apropriado: em pleno Maracanã, diante de quase 120 mil torcedores, e contra um Flamengo poderoso, que conquistaria, tempos depois, três títulos brasileiros, uma Libertadores e um Mundial Interclubes. E o Verdão não tomou conhecimento: aplicou sonoros 4 x 1 e garantiu vaga nas semifinais do Brasileiro daquele mesmo ano. Na semifinal, contudo, prevaleceria a força do Internacional, que contava com Falcão no auge da forma, e conquistaria um inédito título invicto.



O ano de 1980 começou com dois revezes para Jorginho. Primeiro, fez parte da malfadada seleção brasileira que disputou o Pré-Olímpico da Colômbia, e sequer chegou perto de conquistar a vaga nos Jogos de Moscou, com direito a humilhantes derrotas para Peru (0 x 3) e os donos da casa (1 x 5). Na volta para casa, o favorito Palmeiras, sem ritmo em virtude da paralisação do campeonato e das férias, perderia as semifinais do Paulistão para o Corinthians, graças a um sofrido gol de canela de Biro-Biro. Após o jogo, Telê se despediu para assumir a Seleção.



Teve início ali a decadência alviverde. A equipe já não ganhava títulos há quatro anos, mas vinha se mostrando sempre competitiva em todos os campeonatos. Mas a saída de jogadores importantes, como Rosemiro e Jorge Mendonça, e apostas equivocadas para o cargo de técnico (como Diede Lameiro e Sérgio Clérice), em pouco tempo minaram aquele belo time de outrora.



Após uma campanha medíocre no Paulistão de 1980, o Palmeiras foi obrigado a disputar a Taça de Prata (o Brasileiro da Série B da época) em 1981. Mesmo ostentando um time tecnicamente medíocre, em que jogadores nada brilhantes como o volante Vitor Hugo e o atacante Sena acabavam sendo destaques, conseguiu, à base de muita raça, subir para a segunda fase da Taça de Ouro naquele ano
[o complicado regulamento da época permitia]. Chegando lá, porém, a equipe caiu na real ao ser eliminada por Sport e Internacional (com direito a uma humilhante goleada de 6 x 0 para o Colorado).


Outros vexames se seguiram, tais como goleadas humilhantes (como os 6 x 2 para o São Paulo no Paulistão de 1981, e as duas surras sofridas no torneio Ramón de Carranza do mesmo ano, 0 x 5 para o Sevilla e 0 x 4 para o CSKA Sofia) e uma nova Taça de Prata de 1982; desta vez, junto com o arquirrival Corinthians, mas os rivais não tiveram coragem de se provocar. Contudo, Jorginho, assim como o becão Luís Pereira (de volta após seis anos fora) e o lateral-esquerdo Pedrinho, conseguiam passar à margem da crise e manter seu prestígio com a torcida.



Pedrinho cansou das humilhações e rumou ao Vasco no início de 1982. A partir daí, Jorginho assumiu a condição de ídolo maior no Palestra. E no ano seguinte, com o time de volta à Taça de Ouro e investimentos pesados (tais como o técnico Rubens Minelli e o volante Batista), parecia que as coisas iriam voltar ao normal. O Palmeiras voltou a fazer bons campeonatos, embora continuasse fraquejando na hora de decidir. E a maior visibilidade finalmente deu a Jorginho a sonhada chance na Seleção. Foi titular durante toda a primeira e frustrante passagem de Carlos Alberto Parreira no comando do Escrete.



No Palestra Itália, a sorte teimava em não sorrir para o jogador. No Paulista de 1984, por exemplo, o time ia bem até explodir o escândalo de doping de Mário Sérgio. O Santos levou o caneco e a angústia alviverde já completava oito anos.



Em 1985, Telê reassumiu o comando da Seleção às vésperas das Eliminatórias para a Copa do México. E Jorginho, seu velho conhecido dos bons tempos de Palmeiras, foi convocado. Mas o sonho de finalmente se firmar com a camisa amarela virou pesadelo com uma grave contusão sofrida num simples treinamento contra os juniores do Atlético-MG: fratura de tíbia e fíbula.



Seguiram-se meses de trabalhos intensos de fisioterapia, medo e incerteza quanto ao retorno. Mas nada tão duro quanto a ingratidão. Seu contrato com o Palmeiras estava perto do final quando da contusão, e o jogador ficou oito meses sem receber salários. No fim, a renovação foi feita em valores muito inferiores ao pretendido. Voltou a jogar em março de 1986, mas já era tarde para conseguir um lugar na Seleção que iria à Copa. E Jorginho teve que se contentar em ver o Mundial pela TV.



Já o Palmeiras, completando àquela altura uma década sem títulos importantes, fazia mais uma tentativa de encerrar a agonia. Montou uma equipe forte, com atacantes de prestígio como Mirandinha, Edmar e Éder. Chegou a empolgar algumas vezes, como nas sonoras goleadas de 5 x 1 e 3 x 0 sobre o arquirrival Corinthians, mas a frustração retornou com força total após a inacreditável derrota para a inexpressiva Internacional de Limeira na final.



Jorginho ainda ficou tempo suficiente para a disputa do Brasileiro em 1986, e deixar uma marca eterna para a torcida. Posou para uma foto de capa da revista PLACAR segurando um porquinho, simbolizando a adoção do novo mascote, antes um apelido pejorativo criado pelos rivais, pela torcida alviverde. Ao final da temporada, despediu-se do Parque Antártica. Levou consigo a marca de um grande jogador, com ótimos números (373 jogos e 95 gols, sendo o 11.º maior artilheiro da história do clube), mas sem a sonhada marca dos títulos.



Acabou transferindo-se justamente para o arquirrival Corinthians, numa rara negociação direta entre os dois clubes. Não caiu nas graças da Fiel; nada de surpreendente, dada sua identificação com as cores rivais. Tampouco brilhou em campo. O time, após uma reação histórica no Campeonato Paulista (de lanterna no primeiro turno a vice-campeão), fez uma campanha ridícula na Copa União (o Brasileiro daquele ano), sendo o último colocado e dando graças aos céus pelo fato de não haver rebaixamento naquela temporada. A gota-d'água foi a cena dantesca ocorrida na derrota de 2 x 1 para o Atlético-MG em pleno Pacaembu, quando um torcedor invadiu o campo, agrediu o jogador e voltou à arquibancada sob os aplausos do resto da torcida.



Sem qualquer clima para continuar no Parque São Jorge, foi para o Fluminense. Seis meses de passagem discreta e sem glórias. De lá, rumou para Porto Alegre, onde foi defender o Grêmio. O time parecia o ideal, afinal era o então tetracampeão gaúcho e um candidato forte ao título brasileiro.



Não foi bem assim: o Internacional despachou o Tricolor na semifinal da segunda e última Copa União, no que ficou conhecido como "Gre-Nal do Século". E durante o Gauchão, Jorginho foi transferido ao Guarani. Ironicamente, dois meses depois de sua saída, o Grêmio faturou o penta. A fama de "pé-frio" estava mais que consolidada.



Após apenas três meses no Bugre, Jorginho tomou o caminho da Vila Belmiro, para defender o Santos. E uma vez mais, não brilhou. Seu futebol já estava em queda, e a conseqüência foi o acerto com o XV de Piracicaba para a temporada de 1990.



Mais uma passagem rápida. Seduzido por uma oferta do ainda incipiente futebol japonês, Jorginho assinou com o Toyota. Lá foi ídolo e ganhou seu primeiro e único título profissional: a Copa do Imperador de 1992. Em 1993, foi para o Nagoya Grampus Eight, onde ficou mais três temporadas e finalmente encerrou sua carreira.



Voltou para Marília, onde hoje administra o Jorginho Sports Center. Está bem financeiramente e seu talento futebolístico é reconhecido por todos que o viram jogar. Apenas a frieza dos números não lhe fez justiça.



Publicado originalmente no fórum Tabelando do site 7SportsBrasil (
www.7sportsbrasil.com) em agosto de 2005


Foto: Gazeta Esportiva